A Heart Less Darkened*

29 de julho de 2020

Dias atrás, eu estava tranquilamente no YouTube quando me deparei com este vídeo:


Como boa masoquista que eu sou, basta descrever algo como perturbador que o meu interesse já se volta completamente para aquilo. Eis que resolvi ver o vídeo, que irei resumir em poucas linhas para quem não tiver paciência para assistir. O autor faz uma análise bem completa do álbum Everywhere At The End of Time, de um artista chamado The Caretaker. O álbum, que na realidade é uma junção de 6 álbuns totalizando 6 horas e 30 minutos de “música”, busca representar o processo da perda de memória causada pela demência.

O início do álbum é composto por baladas dos anos 30, a fim de simular as memórias de uma pessoa já muito idosa, e as faixas são um tanto quanto repetitivas, mas existe um motivo para isso. O álbum é dividido em 6 estágios: no primeiro, a música flui tranquilamente, como se nada estivesse errado — assim como são os primeiros estágios da demência. No segundo estágio, a música começa a apresentar falhas e ruídos, representando as interferências que a pessoa que sofre de demência acaba tendo em suas memórias. Ainda é algo agradável de ouvir, dando a sensação apenas de ser algo muito antigo. Já no terceiro estágio, as coisas começam a perder um pouco o sentido. Os instrumentos ainda são perfeitamente audíveis, mas as músicas deixam de obedecer uma lógica, dando a sensação de que estamos ouvindo alguém tocando errado.

Nos estágios 4 e 5, a coisa fica um pouco mais complicada. O que antes eram baladas relativamente alegres agora soam como barulhos estranhos, por vezes irreconhecíveis, no meio de uma confusão de ruídos que faz você se perguntar constantemente o quê você está ouvindo. Às vezes, é possível ouvir um acorde ou outro das melodias dos primeiros estágios, e o motivo pelo qual as músicas são repetitivas é justamente esse: trazê-las novamente nos estágios mais avançados, mas com tanta distorção que se torna irreconhecível. O sexto estágio, o mais avançado de todos, é composto majoritariamente por ruídos desconexos e pequenos momentos em que instrumentos podem ser ouvidos claramente, diferentemente dos estágios 4 e 5 — como se, por momentos muito rápidos, a pessoa tivesse uma breve lucidez, mais lúcida do que nunca na vida. E os últimos 5 minutos não têm como descrever. É o último suspiro antes do apagamento completo de uma consciência que, há muito, lutava para sobreviver.

É claro que não se trata do tipo de música para todo mundo. Não julgo qualquer pessoa que não seja masoquista o suficiente para passar 6 horas escutando ruídos desconexos e tentando simular a experiência de, aos poucos, ir perdendo a consciência de si mesmo. Acontece que eu sou exatamente esse tipo de pessoa, e resolvi dar uma chance.

Os poucos leitores que me acompanham sabem que, desde janeiro de 2020, minha mãe lutava contra um câncer cerebral. É claro que é um quadro bem diferente da demência, inclusive muito mais agressivo, porém, no fim das contas, os sintomas acabavam por ser muito parecidos: perda de memória, confusão, dificuldades para reter novas informações, entre outros. Não foi nada fácil ver minha mãe batalhando contra estes sintomas durante os 6 meses nos quais ela lutou, e meu coração se partiu em mil e um pedaços na última vez em que a vi, na qual ela não conseguia nem mesmo me reconhecer. Ela olhava para mim com um semblante de confusão, como se soubesse que sabia quem eu era, mas ao mesmo tempo não conseguia reconhecer — exatamente como acontece quando ouvimos as passagens das músicas nos estágios 4 e 5 do álbum.

Eu resolvi ouvir este álbum porque eu queria entender. Todo mundo sabe a sensação de estar confuso com alguma coisa; em algum momento de nossas vidas, todos nós passamos por breves momentos de confusão, nos quais temos dificuldade em identificar o que estamos vendo, o que estamos sentindo ou até mesmo o que estamos tentando falar. No entanto, no fim de sua vida, minha mãe vivia essa confusão 24 horas por dia, com breves momentos de lucidez nos quais conseguia se comunicar. Como eu disse anteriormente, talvez seja uma certo masoquismo da minha parte, mas eu senti que deveria ao menos dar uma chance e permitir me sentir tão confusa e sozinha como ela provavelmente se sentiu nas últimas semanas.

Não foi um processo fácil.

Faz exatamente 20 dias que minha mãe deixou este mundo, e cada dia fica mais difícil sair da cama. Eu não consigo nem dizer que estou triste, pois cheguei em um estágio no qual as minhas emoções não fazem mais nenhum sentido. Os dias têm sido como longas sessões do mais absoluto nada, em que o vazio impera. Não perdi minhas memórias e nem minha consciência, mas a parte de mim que perdi faz com que haja uma identificação um pouco mais profunda do que o originalmente pretendido com este álbum. Emocionalmente falando, meus dias são como o estágio 5: um grande ruído com ocasionais momentos de felicidade, angústia ou medo. Principalmente medo.

Eu sei que estou lidando com algo muito maior do que eu. Tenho esperanças de conseguir crescer e poder, um dia, olhar para esse momento da minha vida e proferir as últimas palavras de Jessie no filme Jogo Perigoso (2017).


Não sei se ficou claro, mas este álbum não é do tipo que você ouve e gosta. É do tipo que você ouve e muda. Não é uma experiência agradável — é, em partes, desesperadora —, mas é o tipo de experiência que te põe a pensar. Enquanto eu ouvia o álbum, inevitavelmente refleti sobre milhares de coisas. Quase todas, é claro, relacionadas ao processo da morte e da perda de consciência.

O que dói não é a perda em si, mas o que fica enquanto está indo embora. Como um fio de cabelo sendo puxado; enquanto ele ainda está preso ao bulbo, dói feito o inferno. Quando o bulbo capilar cede, a dor passa.

Ao pensar sobre o fenômeno da consciência, acabei lembrando de um outro vídeo que vi tempos atrás, no qual o autor lista as coisas das quais não temos nenhum controle em nossas vidas, chegando à triste conclusão de que, no fim das contas, tudo que temos é a nossa consciência.


Perdê-la parece horrível, é claro. É um processo doloroso, como um fio de cabelo sendo puxado, mas essa dor se estende por semanas, meses e até mesmo anos. Contudo, quando você assume ser uma consciência sem o menor controle da própria percepção, o processo deixa de ser um pesadelo vivo — é só mais uma fase. Uma última fase na qual o final traz o alívio de esquecer-se completamente quem se é. Uma última fase na qual o fio de cabelo se desprende completamente e para de doer.

Eventualmente, tudo vai embora. No fim, a experiência de ouvir este álbum só reforçou a ideia de que é preciso viver no momento presente, e as dores do passado não devem servir de residência para uma alma machucada, mas sim ajudar a compreender o presente e as coisas que aqui se manifestam.

No fim das contas, a experiência não curou minhas dores, e eu nem esperava isso. Contudo, ela certamente ressignificou algumas coisas, me fez compreender melhor o processo, e acredito que este seja um dos primeiros passos.

Eu não quero mais ser uma pequena criatura indefesa no escuro que utiliza da agressividade para lidar com a ameaça do desconhecido. Eu quero sair do fundo do poço depois de ter acostumado meus olhos à escuridão, sendo capaz de enxergar tudo que ali habita.

* A Heart Less Darkened é a primeira faixa do álbum Alive With Scars, de Flowers for Bodysnatchers, um artista que luta há muitos anos contra a Esclerose Múltipla, uma doença autoimune que ataca o sistema nervoso e, por fim, também causa os mesmos tipos de sintomas presentes em outros quadros neurológicos.

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