Espiral descendente // Sobre as dores de “encontrar a si mesmo”

3 de novembro de 2020

Nos últimos meses, além de todas as coisas que aconteciam externas a mim, uma série de eventos internos me fizeram questionar algumas certezas. Dentre elas, a de que eu sei quem eu sou, o que quero, e que estou satisfeita com isso.

Foi durante uma sessão de terapia que caiu a ficha. E ela caiu tão bem caída que minha analista disse “deu para ouvir a ficha cair daqui”, apesar dos quilômetros de distância reduzidos pela tecnologia móvel. E eu ainda estou digerindo tudo isso — não é um processo fácil, e eu não sei onde ele vai terminar, ou até mesmo se existe um fim.

Acontece que eu nunca entendi muito bem essa coisa de conhecer a si mesmo e se encontrar. Sempre que me falavam de “técnicas para se encontrar”, como “ouvir seu coração”, tudo que eu ouvia era apenas silêncio.

Todas aquelas técnicas como fechar os olhos, respirar profundamente e tentar ouvir o seu eu interior nunca me levaram a lugar algum. Cheguei a acreditar que eu não tinha um eu interior — eu era apenas uma casca com superfície reflexiva que imitava aquilo que os outros à minha volta faziam.

O meu erro, deveria ser claro, foi tentar apagar meu passado em todos estes momentos.

O tal do “eu interior” não é uma entidade cósmica que te guia por toda a sua vida — ele é simplesmente a amálgama de todas as experiências vividas, sejam elas boas ou ruins, de todas as atitudes tomadas, de todos os erros e acertos; em suma, não se trata de um ser interno que diz o que deve ser feito e quais os passos a serem tomados para se realizar, mas sim um poço de todas as coisas que já foram, são e podem ser. Os afetos e desafetos, os problemas e suas soluções, os sonhos e frustrações. O que faz sorrir e o que dói.

Encontrar a si mesmo significa se enfiar nessa bagunça e tentar tirar as lições que deveriam ter sido aprendidas ao longo de toda essa caminhada. Encontrar a si mesmo não é encontrar seu verdadeiro propósito de vida, embora possa ajudar nisso, e também não é ter certeza daquilo que você quer. É encarar de frente tudo aquilo que você tem sido.

Por conta disso, encontrar a si mesmo dói. Porque as chances de você encontrar alguém que você simplesmente não gosta são enormes. Encontrar a si mesmo é encontrar alguém que você jamais deixaria ficar na sua vida, se você pudesse. É encontrar o seu maior inimigo, que vai contra tudo aquilo que você acredita e quer realizar na sua vida.

Não preciso nem deixar claro que foi exatamente isso que descobri. Encontrei exatamente o tipo de pessoa que eu jamais gostaria de conviver. Individualista, narcisista, tirana, sensível em alguns aspectos, insensível em outros. Uma pessoa de quem eu gostaria de manter toda a distância possível.

Uma pessoa que não sabe amar, que não sabe ser leal, que não suporta críticas, que tenta manipular tudo e todos a sua volta para que façam a sua vontade. E eu odeio essa pessoa com todas as minhas forças.

Eu me odeio. E, assim como fazemos com tudo aquilo que odiamos, mantenho distante. Em outras palavras, eu não me permito ser; não me permito existir no mundo.

E perceber isso foi o que acabou comigo. Por muito tempo, me questionei porquê eu simplesmente não conseguia fazer as coisas. Não entendia como era possível simplesmente existir e viver uma vida sem sentir uma imensa vergonha de si mesmo.

O pior de tudo, entretanto, nem foi realmente concretizar a frase “eu me odeio”, mas sim o fato de que eu achava que já tinha superado. Eu sempre soube que não gostava muito de mim, mas por um tempo acreditei que tinha aprendido a me amar, ao menos um pouquinho. Eu realmente queria acreditar.

Quis acreditar que meu sentimento por mim mesma não era tão ruim assim, que eu tinha feito algum progresso e que agora poderia finalmente me livrar da minha própria toxicidade.

A realidade é que, mesmo brincando frequentemente sobre não gostar de mim mesma, eu não tinha noção da profundidade desse sentimento de auto-rejeição. E agora eu me encontro em uma espiral descendente, cada vez mais atraída pelo centro a medida em que vou caindo na minha própria miséria.

Encontrar a mim mesma, portanto, foi mais como me deparar com um sentimento colossal de auto-ódio. Não foi uma viagem bonita acompanhada de uma narração de meditação guiada e o lindo canto dos pássaros em um jardim zen.

Foi mais como ser engolida por um sentimento mil vezes maior do que eu, ser esmagada pelo peso de um mundo inteiro, ou até mesmo conhecer o desespero do herói ao perceber que está lutando contra um inimigo imensamente mais poderoso, para o qual ele ainda não está preparado.

Assim como o herói, não tenho muita certeza se consigo dar conta. Ao menos, não por enquanto. Quem sabe este seja o arco de desenvolvimento que faltava para tornar minha história minimamente interessante?

Contudo, não é como se essa história não tivesse um lado bom. Como dito anteriormente, encontrar a si mesmo pode ajudar a encontrar seu “propósito de vida”. Não no sentido de uma missão que você precisa cumprir em vida, mas no sentido de compreender o que você quer fazer enquanto ainda está aqui, saber onde você quer chegar. Como você deseja se autorrealizar?

Tendo posse do conhecimento de quem eu descobri ser, bem como a compreensão daquilo que eu valorizo e quero em minha vida, eu posso começar a abrir um caminho. Depois de encontrar a mim mesma, eu posso criar a mim mesma.

Eu não estou presa ao eu que foi encontrado. Não estou presa a quem eu sou neste exato momento. Eu sou livre para modificar aquilo em mim que não gosto, e ir atrás daquilo que quero e acredito.

Não se trata de um trabalho fácil — é mil vezes mais simples aceitar que eu sou uma pessoa horrível aos meus próprios olhos. E, confesso, fiquei muito tentada a isso. Por um tempo, pensei que o melhor caminho não era mudar aquilo que me incomodava, mas sim aceitar e aprender a amar essa criatura que me tornei ao longo dos anos.

E eu tentei. Juro que tentei, com todas as minhas forças. Por fim, percebi que não consigo. Eu jamais seria capaz de amar um ser tão miserável.

Eis que a única saída é, então, mudar. Porque eu não posso mais permitir todo esse descaso comigo mesma. Existe uma quantidade certa de quanto desconforto uma pessoa pode aguentar até levantar do sofá e fazer alguma coisa.

Como uma lagarta em um casulo que começa a sentir a pressão dos tecidos de seu corpo sendo trocados, das asas surgindo e, finalmente, rompendo o casulo para aprender a voar.

Não é fácil, mas continuar estagnado é mais difícil ainda. Resta-me levantar do sofá e fazer alguma coisa sobre isso. Afinal de contas, eu não sou uma pessoa ruim que eu odeio. Eu estou sendo.

3 comentários:

  1. Nada a acrescentar nessa reflexão fantástica. Que me faz pensar em Freud, quando diz que a gente cresce no conflito. Ninguém cresce numa vida linda cheia de borboletas, é a dor e o incômodo que fazem a gente se mexer ao buscar algo melhor. É o desconforto, a insatisfação, que fazem a gente almejar algo melhor - e, porque não, o amor próprio. Acho que há mais amor próprio em reconhecer seus pontos negativos e optar por enfrentá-los e buscar algo melhor pra si mesma do que nessa balela de aceitar tudo como é, porque só a meditação e a dieta nutritiva xyz vão te auxiliar no caminho da auto-aceitação. Às vezes o negócio é aceitar que estamos na merda e buscar como sair dela, oras. Não ficar se contentando com isso pra sempre.

    Enfim, sempre fico receosa em comentar a minha opinião nos teus textos porque eles são tão pessoais e particulares que sinto estar me equivocando nas minhas palavras, mas é isso aí. Espero que daqui em diante você, como uma lagarta que vira borboleta, possa se transformar em algo que te faz se sentir mais feliz!

    (respondendo seu comentário num momento bem inconveniente: recomendo o pumpkin spice latte. Não se deixe enganar pela "estranheza" da abóbora, é uma delicinha sim <3 A não ser que vc odeie abóbora, daí obviamente não vai ter nenhuma mágica embutida, não, HUASUAHUSHAUH)

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  2. Hello Maria!

    Esse seu texto sobre encontrar a si mesmo esta realmente muito bom, e me fez pensar sobre mim também, ele tocou fundo e me fez me questionar o que sou e o que estou fazendo a mim mesma. Mas algo ali que você disse, sobre o Herói se dar conta que encontrou alguem mais forte. Isso é pura verdade e o mais incrível disso é que mesmo ele encontrando um inimigo mais forte ele não desiste e foge da luta, ele segue até o fim. Como diz o ditado "Melhor é morrer tentando, do que morrer por nunca ter tentado." Se não formos nos a nos mudar, ninguém mais ira fazer por nós.

    Enfim, não sei se disse o certo. Mas espero que você consiga se encontrar mais e mais e se reinventar, por que é maravilhoso quando conseguimos ser quem realmente queremos ser.

    bjinhos!

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  3. Maria ♥
    Primeiramente, obrigada pelas suas palavras no último post, fiquei muito feliz de verdade. Acho que no fundo foi um livramento mesmo e não tenha me dado tanta conta.

    Esse seu texto foi bem reflexivo, esse "encontrar a si mesmo" é algo bem impactante (e importante também) e isso que escreveu é tão particular... Inclusive me identifiquei em alguns pontos. Acho que tudo é um processo e nem todo processo é acompanhado de flores não? E nem sempre todo processo é fácil também. Espero que esse auto-ódio que te ronda não te consuma e que você encontre um caminho mais feliz para trilhar.

    Beijos e cuide-se ♥

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